Sob o Sol

Sobre o que vou escrever? Ainda nao sei. Talvez sobre tudo sob o Sol...

28/07/2003

Cinismo

Numa das minhas leituras do Abrupto vi uma referência sobre música árabe, que segui para um outro blog, o Portugal dos Pequeninos. Neste li algumas coisas mais, ao acaso, tendo o tom geral me parecido crispado e sarcástico em demasia, mas não muito mais que a média de outros blogs que já li. No entanto, houve um texto que me desagradou particularmente, e onde me pareceu que o autor tinha perdido a noção do respeito mínimo pelas pessoas e usado termos muito desagradáveis, generalizações grosseiras sobre milhares, ou milhões, de pessoas. Não chego a fazer parte desse rol, mas ainda assim acho que é desagradável, e se justifica dar algum "feedback" ao autor.

Refiro-me ao texto "A Herança", de 16/07/2003. Nele o autor fala da situação africana, dos pedidos de desculpas estatais apresentados com décadas ou séculos de atraso e da colonização portuguesa em África. Há vários pontos que me pareceram particularmente desagradáveis:


A solidariedade com Timor foi descrita como "baba" e "folclores de rua"
Acho isso muito injusto para com as pessoas envolvidas. Certamente que haverá envolvimentos mais ou menos sinceros, mais ou menos sentidos, e mais ou menos esforçados, mas será sempre melhor que a simples indiferença. E mesmo que o apoio prático não tenha coberto tanto quanto os timorenses precisavam, certamente que eles não menosprezaram esse apoio, da forma que o "Portugal dos Pequeninos" fez.

Os pedidos de desculpa foram classificados como "patéticos"
Concordo que é impossível que os pedidos de desculpa reparem os males praticados. Mas só o(s) destinatário(s) desses pedidos pode(m) julgar se ele é necessário ou não, desejável ou não, útil ou não. Por exemplo, eu vivo actualmente no Brasil, onde existe uma proibição de piadas sobre negros, coisa que durante muito tempo achei um tanto ridícula. "Na prática, de que lhes serve isso", pensava eu, "seria mais útil uma medida concreta, como a criação de cotas para o acesso ao ensino superior ou a cargos públicos, etc". Mas mesmo sobre essa parca medida, relativa às piadas, acabei concluindo que não tenho como avaliar isso. Não sei qual o efeito que isso tem sobre a auto-estima de milhões de pessoas, e sobre o respeito que foram adquirindo. Posso fazer muitas suposições, mas não posso sabê-lo de facto, não posso sentir o efeito, sendo eu branco.

A presença de Portugal em África foi equiparada à presença no Minho ou em Trás-os-Montes
Parece-me muito estranho falar de "presença de Portugal" no Minho ou em Trás-os-Montes, que desde sempre foram parte integrante de Portugal, e onde não consta que haja movimentos separatistas. E admitindo que esta presença, ainda que não seja épica ou gloriosa, não será assim tão terrível, porque seria negativo que a presença em África fosse imbuída do mesmo espírito?

Os portugueses em África foram classificados em bloco como paternalistas e interesseiros
Mais uma vez, parece-me uma generalização excessiva. Mesmo que isso fosse verdade para a maioria, haveria ainda um número significativo que consideravam a África como o lar, mais do que a metrópole.

A miscigenação foi descrita como imposta por Salazar e resultando em "pretas [montadas] à fartazana"
Acho que o que eu já disse antes sobre generalizações e respeito aplica-se em dobro a esta afirmação. Respeito pelas mulheres africanas e suas famílias, respeito por aqueles portugueses que não encaravam as coisas dessa forma, respeito até por Salazar, que podia ser um ditador, mas não consta que fosse um grosseiro. Também duvido que seja rigorosa essa afirmação simplista de que "Salazar impôs a miscigenação", mas deixo essa questão para quem souber mais de história colonial que eu.

Os retornados das ex-colónias foram um "resultado (...) despejado em contentores nos cais de Lisboa"
Uma vez mais, há uma questão de elementar respeito pelas pessoas. Pessoas não são "resultados", e pessoas não são "despejadas em contentores".

"(...) uma profunda e terrível miséria moral e material, sem fim."
Também aqui o "Portugal dos Pequeninos" faz afirmações categóricas, definitivas e totalmente indiferentes aos sentimentos das muitas pessoas que têm consciências dos problemas existentes, mas que têm ainda esperança.

Enfim, pedidos de desculpas podem ser patéticos, mas são certamente melhores que um texto tão repleto de cinismo. Espírito crítico é importante, e o "Portugal dos Pequeninos" tem-o de sobra, mas não deve esquecer o elementar respeito pelos outros.

Mas creio também que, infelizmente, este problema está longe de ser monopólio do PdP. O Abrupto tem uma frase, de 17/7/03, que descreve isso bem, como sendo "essa irritação tão à flor da pele que se encontra em muito blogues disfarçada de convicções".

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